Foto: Adriana Medeiros (amedeirinhos@gmail.com)
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Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo, busquei dar conta de minhas próprias dificuldades, cresci rápido, passando por uma breve adolescência. Sempre ao lado de minha mãe aprendi a conhecê-la. Decifrava o seu silêncio nas horas de dificuldades, como também sabia reconhecer, em seus gestos, prenúncios de possíveis alegrias. Naquele momento, entretanto, me descobria cheia de culpa, por não recordar de que cor seriam os seus olhos. Eu achava tudo muito estranho, pois me lembrava nitidamente de vários detalhes do seu corpo. Da unha encravada do dedo mindinho do pé esquerdo... Da verruga que se perdia no meio da cabeleira crespa e bela... Um dia, brincando de pentear boneca, alegria que a mãe nos dava quando, deixando por uns momentos o lava-lava e o passa-passa das roupagens alheias, se tornava uma grande boneca negra para as filhas, descobrimos uma bolinha escondida bem no couro cabeludo ela. Pensamos que fosse carrapato. A mãe cochilava e uma de minhas irmãs, aflita, querendo livrar a boneca-mãe daquele padecer, puxou rápido o bichinho. A mãe e nós rimos e rimos e rimos de nosso engano. A mãe riu tanto das lágrimas escorrerem. Mas, de que cor eram os olhos dela?
Foto: Adriana Medeiros (amedeirinhos@gmail.com)
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Às vezes, no final da tarde, antes que a noite tomasse conta do tempo, ela se assentava na soleira da porta e juntas ficávamos contemplando as artes das nuvens no céu. Umas viravam carneirinhos, outras, cachorrinhos; algumas; gigantes adormecidos, e havia aquelas que eram só nuvens, algodão doce. A mãe, então, espichava o braço que ia até o céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na boca de cada uma de nós. Tudo tinha de ser muito rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os nossos sonhos se esvaecessem também. Mas, de que cor eram os olhos de minha mãe?
Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de fortes chuvas. Em cima da cama, agarrada a nós, ela nos protegia com seu abraço. E com os olhos alagados de pranto balbuciava rezas a Santa Bárbara temendo que o nosso frágil barraco desabasse sobre nós. E eu não sei se o lamento-pranto de minha mãe, se o barulho da chuva... Sei que tudo me causava a sensação de que a nossa casa balançava ao vento. Nesses momentos os olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia! Então, porque eu não conseguia lembrar a cor dos olhos dela?
Foto: Adriana Medeiros (amedeirinhos@gmail.com)
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E foi então, que tomada pelo desespero por não me lembrar de que cor seriam os olhos de minha mãe, naquele momento resolvi deixar tudo e, voltar à cidade em que nasci. Eu precisava buscar o rosto de minha mãe, fixar o meu olhar no dela, para nunca mais esquecer a cor de seus olhos.
E assim fiz. Voltei, aflita, mas satisfeita. Vivia a sensação de estar cumprindo um ritual, em que a oferenda aos Orixás, deveria ser descoberta da cor dos olhos de minha mãe.
E quando, após longos dias de viagem para chegar à minha terra, pude contemplar extasiada os olhos de minha mãe, sabem o que vi? Sabem o que vi?
Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas, eram tantas lágrimas, que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face? E só então compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas na superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum...
Abracei a mãe, encostei meu rosto no dela e pedi proteção. Senti as lágrimas delas se misturarem às minhas.
Foto: Adriana Medeiros (amedeirinhos@gmail.com)
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Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?[1]
[1] Conto publicado em Cadernos Negros 28, São Paulo, Quilombhoje, 2005,
Publicado em Contos do mar sem fim, Rio de Janeiro :Pallas, Guine-Bissau:Ku Si Mon, Angola: Chá de Caxindé, 2010.
Este texto emociona, sempre, lido, ouvido, lembrado! Bjs. Maria Regina Moura
ResponderExcluir"Há entre quem sou e estou/Uma diferença de verbo/Que corresponde à realidade."
ResponderExcluirComeço citando (Álvaro de Campos) pois, é nessa ambivalência que me encontro. O que faz um Homem "claro" de 32 anos, nascido carioca da gema, emocionar-se com a literatura de Conceição Evaristo.
Conceição...
Conceição é o sobrenome que não consta no meu registro de identidade civil, não consta em minha identidade visual, mas consta no de minha avó materna. Mulher, negra e de uma liberdade surpreendente. Entre estar "vivo" e ser "branco" existe Uma diferença de verbo que corresponde à realidade, e a realidade é que seus versos tocaram minha alma e fizeram-me sentir a dor e a luta de meus antepassados para que eu esteja aqui hoje. Conceição, sua escrevivência me despertou de um sono muito injusto.
Axé!